PROSA E POESIA

CONTO

As Flores da Paixão
Pecê Ribeiro

Um cachorro magro tenta destruir uma sacola de supermercado onde estão restos de comidas que seu faro detectou em meio àquele lixão. “Sai da frente”, grita o motorista do caminhão que descarrega mais lixo naquele depósito. O bicho salta com o rabo entre as pernas, mas arrasta pela boca o que mataria sua fome. Um garoto maltrapilho, mais adiante, junto com os quatro irmãos e a mãe também interrompem a garimpagem e se afastam para deixar passar o veículo. A fumaça preta solta pela descarga atenua o cheiro de podre que empesta o ar.
         Um vento frio atravessa o descampado terreno e, de vez em quando, um ronco de avião entra pelos ouvidos fazendo a terra tremer. Distraídas, algumas crianças se divertem com pedaços de objetos inservíveis que a cidade jogou fora. Alguns desses trecos fazem a alegria de adultos que trazem de volta para a cidade, onde vendem. Outras pessoas estão ali disputando restos de comidas entre si e com cães e urubus.
         Chico é um desses. Maltrapilho, como todos ali, está feliz com um casaco velho, bem maior do que o seu manequim, que encontrou há pouco. É a garantia de agüentar o inverno que se avizinha. Mesmo sendo fim de outono, o clima frio dá mostras de que a próxima estação vai castigar. Com um pedaço de pau, revolve o lixo na esperança de encontrar algo. O quê, pra quê, pra quem, não importa.
         Espanta-se com uma cabeça de boneca, como se tivesse encontrado uma cabeça humana. Viva, porém. Olha-a com carinho e a pega, com muito jeito, como a protegê-la. Encosta-a ao peito, encaminha-se na direção de uma garotinha de cara suja que estava próxima e, sem falar qualquer coisa, dá para ela. A criança pega, esboçando um sorriso.
         Chico volta para onde estava e continua sua busca. Encontra um boné, com um escudo de clube de futebol. É do Flamengo, seu time. Sorri e pega orgulhoso. Sacode o boné, para afastar a poeira, e o põe na cabeça. Sente-se mais protegido do frio. Um garoto vê e pede: “Pô, dá pra mim?” Negando-se, Chico faz cara de pouco amigo e se afasta.
À frente, encontra uma rosa de plástico. Mesmo desbotada, o rosto dele se ilumina. Mais ainda quando não distante estão outras duas daquela flor. Parecem fazer parte de um mesmo buquê. Supondo que encontraria outras, começa a procurar. Talvez doze ao todo, era s sua conta. Quer dizer, faltam nove.
         Olha para aqui, busca ali, avista lá. Encontra mais duas: “Oba, agora são cinco”, exulta e aumentam suas esperanças. Pensa em ofertá-las à Nonô, uma mulher que com ele habita debaixo de um viaduto e dividem suas fortunas encontradas no lixão.
         Os dois estão sempre ali garimpando juntos. Hoje ela não veio porque passou mal de tanta cachaça que beberam ontem, sendo levada para o pronto socorro. “Essas flores são para quando ela voltar”, planejava, enquanto busca as sete restantes. “Tem que ser doze”, insistia.
         Depara com um sapato. É o pé direito. Verifica que está em bom estado. Olha em volta querendo encontrar o esquerdo, já que experimentou este e, mesmo um pouco apertado, cabe nele. Pra sua sorte, está bem ali. Agora, calçado, está mais protegido do frio.
         Enquanto se preocupa com os sapatos, vê passar à sua frente uma mulher com mais uma rosa na mão. Volta sua preocupação em conseguir formar o buquê. Pede: “Me dá essa flor?”. A mulher, vendo outras em suas mãos e percebendo seu grande interesse, se nega.
         Quer negociar: “O que você tem aí pra trocar?” Se lembra de um pedaço de sanduíche que encontrou  e estava no bolso pra comer mais tarde. Propõe e é aceito.
         A mulher sai dali comendo o sanduíche, e ele mais certo ainda de chegar às seis restantes. Persiste na procura, encontrando mais duas, bastante amassadas, debaixo de um caixote. Pega-as e imediatamente tenta reconstruir as pétalas. Mexe daqui e dali: “Está melhor assim”, sorri. “Faltam quatro”, reconta.
         Imagina a felicidade da Nonô ao receber as doze rosas. Isso o fazia mais rápido no revolver o lixo. De vez em quando, com ar de júbilo, olha para aquelas encontradas. Continua na busca. Tropeça em um porco que se deliciava com restos de feira. O animal se espanta, mas não arreda. Ali mesmo encontra a nona flor, em meio a alfaces e tomates amassados. Pega, limpando-a no casaco, enquanto o porco o olha desconfiado, sem parar de comer.
         Chico mexe mais por ali, sem êxito. Olha para outras pessoas: “Quem sabe alguém encontrou o resto.” Não é que perto de um cara estão mais duas. Ele corre para pegar. É o tempo em que o homem se agacha e se antecipa a ele. “Porra”, irritou-se e voz alta. Gritou: “Ei, essas rosas são minhas!” Curioso, o cara olha para ele, e segura firme as flores: “Que suas.” Chico tenta convencer: “Não está vendo as outras aqui?” O outro, já aborrecido: “Isso não quer dizer nada. Aqui, quem encontra é o dono.” Foi forte o argumento, de modo a convencê-lo: “Tá certo, tá certo.”

         Mas não desiste em conseguir: “Eu preciso delas.” O homem, muito puto com ele, resiste: “Problema é seu.” Nisso, outras pessoas ficam em volta para saber do resultado. Chico anda para um lado e para o outro, até sugere: “Troco por esses sapatos.” O cara olha... olha, e faz jogo duro: “Sei lá...”
         De pronto ele instiga: “Vai perder essa sopa? Olha só, tá bonzinho”, diz, tirando do pé para mostrar. O cara pega... olha, mas valoriza: “Quero ver o outro.”  Imediatamente, quase caindo em um pé só. Chico tira o segundo, põe os pés no chão frio e mostra. O homem segura e topa a parada. Passa para as mãos dele a décima primeira rosa.
         Desfaz-se a rodinha. Todos se afastam decepcionados. Queriam ver porrada. Nisso Chico avista o final da sua busca: “Ai, meu Deus", diz com o coração batendo forte. A rosa de número doze. Seu coração acelera. Já vê a Nonô cheia de felicidade. Antevia sua noite de frio acalentada ainda mais pelos braços dela. Vão tomar um grande porre, mesmo que venham parar novamente no pronto socorro.
         A rosa está na mão do menino que queria seu boné. Dessa vez ele pensa em ter cuidado para não revelar seu grande interesse. Ele cismou que tem que ser doze rosas. “A Nonô merece”, pensa. Mas como começar o papo com o menino? Cogita até de pegar na marra e sair correndo. Desiste, ao lembrar de uma surra que um cara levou quando tentou roubar um achado de alguém.
         “Vamos ver o que tenho aqui para negociar”, meteu a mão no bolso para procurar. “Caramba”, encheu-se de esperanças ao encontrar quatro bolas de gude, misturadas a pregos, arruelas, moedas... Só a medalha de São Jorge imediatamente recoloca no bolso. Acha justa a troca. E parte para a tentativa.
         Põe as bolas de gude na palma da mão: “Ei, menino, quer trocar essas bolinhas por essa rosa aí?” O garoto pára, olha em direção a sua cabeça de olho no boné: “Tô a fim não.” Ele persiste: “Vai dizer que não gosta de jogar bolas de gude?” O garoto dá de ombros. Acaricia a rosa. Chico se impacienta: “Isso não serve para você.” Não perde a chance e faz outra oferta: “Tá bom, eu te dou esse casaco.” O garoto discorda: “Nem dá em mim.” Logo vem outra tentativa de persuasão: “Olha, pode servir pra você no frio, que já está forte.”
         O guri nem liga. Chico tenta convencê-lo, falando da alegria que ia dar à Nonô e que o buquê tinha que ser doze rosas e mostra as demais. O moleque faz sua contraproposta: “Me dá esse boné que eu te dou a rosa.” Chico fica gelado: “Meu boné do Flamengo!” Pensa, pensa, anda, mete a mão no bolso e tira as bugigangas: “Escolhe aí, guri, tudo isso e mais as bolas de gude.” E o moleque: “Eu quero o boné e pronto.”
         Chico não sabe mais o que fazer. Outra vez pensa em partir para a ignorância, desistindo quando repara que novamente junta gente. Passa a mão no boné em sua cabeça. Lembra da Nonô, seus carinhos, sua alegria. Olha fulminando o menino. Abraça com carinho as onze rosas conseguidas. Depois joga-as fora ali mesmo e vai embora. O menino, vendo-o se perder na distância, abaixa-se e com um leve sorriso pega as flores.




POEMAS

MEU POEMA

Vejo meu poema
Minha fêmea
Em pele correr pela praia.
Sua nudez sorri
Brinca entre a areia
E o mar.
Seu sorriso desliza
Sobre as ondas
Que lambem seu corpo
E o sol lhe tira
As marcas da vergonha.
Meus olhos lhe acariciam
Como quem sonha.
Seus ralos pêlos
Seus apelos
A luz do seu rosto
O amor exposto
A vontade de amar
A rima do mar amar sonhar
Tudo deixa no ar o sabor de liberdade.
Meu poema vibra
Ao prazer de ali estar
Pra depois lembrar
Apenas lembrar.

*****

DESPERTAR

Entreguei-me aos pesadelos
Quando os encontrei
Na residência das minhas verdades.
Atraquei-me com os medos
Os pavores e horrores.
Muitas vezes eu morri
E outras tantas renasci
Sempre com a certeza
De que os venceria ao amanhecer.
A minha odisseia se encerraria
Quando os raios solares
Invadissem a minha cama.
Depois despertaria para a vida
A única vida

Após a qual não mais haverá vitoriosos.